domingo, 1 de junho de 2014

Por que não abrir mão da crítica à Copa do Mundo? Artigo de Isabella Gonçalves Miranda, em 16/05/2014



Por que não abrir mão da crítica à Copa do Mundo?
Isabella Gonçalves Miranda[1]

Criticamos a Copa do Mundo para não se invisibilizar o legado perverso que ela deixa para muitos brasileiros e brasileiras, para que nunca se perca a nossa capacidade de indignação frente às injustiças.”
Coimbra, Portugal, 16 de maio de 2014.

Acima de tudo, procurem sentir no mais profundo de vocês qualquer injustiça cometida contra qualquer pessoa em qualquer parte do mundo. É a mais bela qualidade de um revolucionário.” (Ernesto Che Guevara).

A Copa do Mundo e as Olimpíadas são os mais importantes e lucrativos megaeventos do capitalismo global. No contexto de sua preparação se radicalizam o sentido privatista de cidade e de políticas públicas contra os quais a esquerda brasileira historicamente se embate. No Brasil, a realização desse megaevento desestruturou a vida de mais de 250.000 brasileiros, que tiveram seus direitos violados: comunidades removidas, favelas militarizadas, trabalhadores deslocados e acidentados, crianças e adolescentes em risco de exploração sexual, população em situação de rua violentamente oprimida, manifestantes criminalizados…
Qual então o sentido do silenciamento da crítica à Copa do Mundo por parte de importantes intelectuais e militantes de movimentos e partidos de esquerda?
Para responder a essa desconcertante pergunta recorremos ao contexto de construção de uma plataforma de governo nos últimos anos que prometeu traduzir algumas das principais pautas políticas da esquerda no Brasil, com especial enfoque nas políticas de redução da pobreza. Confiantes nesse projeto, movimentos sociais e organizações da sociedade civil fizeram uma opção estratégica de confiar politicamente no projeto levado adiante pela legenda do Partido dos Trabalhadores (PT). Por um lado, isso gerou mais confiança política, estabilidade e cooperação na construção de um projeto transformador de país, por outro, silenciou muitas das críticas e lutas justas que deveriam ser feitas ao governo, por receio de a mesma “fortalecer a direita”.
Pergunto-me, contudo, o que ocorre a um governo que deixa de ser pressionado pelo campo popular dentro de sistemas capitalistas?
O PT nunca deixou de ser pressionado pela direita e hoje constatamos que para se manter no poder o partido teve que ceder a perversas concertações políticas com setores da elite agrária e urbana, nacional e internacional. No contexto da Copa do Mundo, a FIFA surge como uma perversa força política transnacional, que tem levado o país a aprofundar modelos de desenvolvimento que violam os direitos dos povos e as soberanias locais.
A crítica à Copa do Mundo, portanto, é uma crítica justa que não pode ser condenada e nem silenciada, com o risco de estamos virando as costas para aqueles que foram oprimidos pelo contexto perverso da preparação do mundial. Os Comitês Populares da Copa, que atuam nas 12 cidades que serão sede dos jogos, integrados pela Articulação Nacional dos Comitês Populares da Copa (ANCOP) há quatro anos tem feito um trabalho de denúncia e organização de grupos de atingidos pela Copa em seu processo de resistência. Tratam-se, por exemplo, de comunidades que se colocaram na frente da polícia e dos tratores contra os processos de remoção que a Copa intensificou.
Compostos por comunidades atingidas, movimentos sociais e organizações da sociedade civil, os comitês acreditam que a crítica à Copa do Mundo se faz não apenas justa, como cada vez mais necessária.
Vivemos em um cenário onde predomina um clima de insatisfação com a Copa do Mundo no Brasil. A maior parte dos brasileiros já se deu conta de que o Mundial não trará um legado positivo para a população. Há pouco mais de 30 dias para o mundial nas ruas as pessoas falam da Copa com ressentimento e, quando evocam a frase “imagina na Copa”, sempre seguem com algum comentário desanimador.
Atualmente a Copa do Mundo politizou o debate nacional sobre diversas questões estruturais no país, desde a questão do debate sobre as prioridades de investimento do orçamento público até discussões sobre a democracia e as políticas urbanas. Esse debate é extremamente salutar e revela a insatisfação de grande parte da população com a condução dos processos políticos no país.
Tal debate certamente influenciará o contexto eleitoral em outubro de 2014 e, por isso, tem razão os intelectuais e militantes que argumentam sobre a possibilidade de perdas eleitorais pela realização da Copa do Mundo. Não tem razão, no entanto, em apostar no silêncio ou mesmo na celebração do Mundial como medida de proteção ao governo federal. Se a crítica hoje é um dado, é necessário disputá-la no campo popular!
Para tal, é preciso combater algumas das falácias produzidas sobre aqueles que lutam contra a Copa do Mundo no Brasil:
Em primeiro lugar, é falsa a ideia de que as mobilizações contra a Copa são promovidas pela direita ou por setores políticos cuja crítica é vazia de conteúdo. Se é verdade que existem setores que buscam se aproveitar do contexto político gerado pela Copa para atacar o governo, eles são um grupo minoritário, embora expressivo em termos de acesso aos meios de comunicação e capacidade de despertar atenções sobre suas pautas.
No campo popular, se organizam nas 12 cidades-sede Comitês Populares da Copa, movimentos sociais e organizações políticas que tem protagonizado expressivas críticas à Copa. Em Belo Horizonte, as ocupações urbanas ameaçadas de despejo lançaram o slogan “Se Tiver Despejo, não vai ter Copa” e mais recentemente o MTST, maior movimento social de luta pela moradia no Brasil, realizou uma ocupação chamada “Copa do Povo” como parte da luta contra a cidade de exceção promovida pelo mundial. Além desses, coletivos artísticos urbanos, movimentos pela tarifa zero e o passe livre, bairros e favelas de todo o Brasil se organizam para contestar o Mundial.
A crítica à Copa do Mundo que constroem esses grupos não se centra em questões vazias que visam incidir negativamente sobre o governo federal, tais como a pauta da corrupção, apresentada de forma moralizante pelos grandes meios de comunicação. Tratam-se de questionamentos importantes sobre as violações de direitos, sobre a intensificação de um modelo neoliberal de cidade, sobre a inversão de prioridades na utilização de recursos públicos etc. Pautas caras a todo o campo popular.
Em segundo lugar, é falso dizer que a mídia nacional está a favor das críticas à Copa ou daqueles que se manifestam contra a Copa. Nos últimos meses os grandes meios de comunicação tem reforçado a criminalização dos protestos e jogado toda a opinião pública contra as formas de contestação mais variadas. Em uma edição recente da revista Veja os Comitês Populares da Copa foram colocados como ameaças ao lado de organizações terroristas internacionais. É preciso perceber que essa mesma mídia é financiada por empresas patrocinadoras da Copa, que lucram enormemente com a sua realização.
Se as manifestações de rua tomarem grandes proporções no período da Copa do Mundo é claro que haverá interesses da direita em pautar as críticas que emergem das ruas. Também é verdade que esses setores farão o uso da mídia para disputar essa crítica, portanto, estaremos em um cenário de grandes desafios. Por isso mesmo é preciso hoje mais convergência na construção de uma crítica sóbria, justa e necessária à Copa do Mundo pelos mais variados setores da esquerda, independentemente de opções eleitorais divergentes.
Na conjuntura atual é muito difícil prever o que serão as mobilizações na Copa do Mundo ou mesmo como será a conjuntura eleitoral, mas de algo podemos estar certos, a nossa fragmentação e desarticulação alimenta os interesses daqueles que desejam ver reproduzidas as mais variadas formas de exclusão social e política que seguem marcando o cotidiano da vida das pessoas nas cidades e no campo brasileiro.
O contexto das Jornadas de Junho nos leva a refletir que embora tenham participado milhares de pessoas, com uma pauta de reivindicações extremamente diversa, foram principalmente pessoas organizadas em espaços de articulação e deliberação “face a face” que construíram contornos políticos à esquerda para as ações coletivas naquele mês e nos que se seguiram. Até certo ponto estreito e disputado, elas e eles foram sujeitos decisivos na convocação dos protestos e na construção de contrainformação midiática, discursos e narrativas sobre o significado político de estar nas ruas, travando uma difícil disputa com os grandes meios de comunicação e outros grupos sociais e políticos. Como consequência as Jornadas de Junho fizeram emergir importantes pautas políticas como a redução da tarifa, a desmilitarização das polícias e a reforma política, além de ter alimentado o desejo de lutar por uma sociedade melhor.
Por que não abrimos mão da crítica à Copa do Mundo? Porque a Copa do Mundo tem causado sofrimento humano injusto e violações de direitos que nos desumanizam e porque acreditamos que a luta é a mais efetiva e democrática forma de transformação dessas mesmas condições de opressão.
Criticamos a Copa do Mundo para não se invisibilizar o legado perverso que ela deixa para muitos brasileiros e brasileiras, para que nunca se perca a nossa capacidade de indignação frente às injustiças. Lutamos para que os direitos das populações sejam reparados, e para que cesse o processo de higienização e militarização das cidades em prejuízo aos grupos mais vulneráveis. Lutamos para que o modelo de cidade impulsionado por esse megaevento não se transforme no cotidiano de produção do espaço urbano brasileiro.
Criticamos a Copa, assim como todos os megaprojetos de desenvolvimento que interpõe os interesses do capital aos direitos e dignidade das pessoas. Repudiamos a forma como o governo brasileiro tem facilitado esses megaprojetos no Brasil e em outros países do Sul.
Criticamos a Copa do Mundo da FIFA, não o futebol em geral, esporte que desperta tantas emoções e alegrias. A FIFA é hoje, em nível mundial, um dos símbolos mais evidentes do que o capitalismo tem de pior: pulsão desenfreada pela mercantilização de todas as esferas da vida; uma política internacional imperialista e corrupta; dominação e desprezo pelas populações locais; pressão pela instauração de um estado de exceção, cujo objetivo último é destruir a democracia para assegurar a acumulação sem fim.
Por isso, no dia 15 de Maio se iniciou a agenda de lutas unificada contra a Copa do Mundo. Essa agenda, amplamente debatida no I Encontro de Atingidos da Articulação Nacional dos Comitês Populares da Copa, questiona de forma incisiva o atual modelo neoliberal de políticas públicas no campo e na cidade e a criminalização do dissenso e do protesto, que atualmente se intensifica no país, com a Lei Geral da Copa e a ativação de legislações retrógradas, tal como a Lei de Segurança Nacional. (Cf. o Manifesto da ANCOP sobre o 15 de Maio)
Acreditamos que o silenciamento e a submissão nunca podem ser efetivos instrumentos na construção de uma política progressista e popular. A crítica é uma parte fundamental do processo democrático. Quando sóbria e consequente, ela ganha um alto poder de impulsionar transformações importantes na sociedade. Se estivermos abertos para avaliar as potencialidades desse contexto de intensificação do debate democrático e da politização de questões estruturais, talvez possamos transformá-lo em um importante momento para o impulso de lutas sociais históricas no país, lutas que não se iniciam na Copa e nem se encerram nela.



[1] Isabella G. Miranda é militante do Comitê Popular dos Atingidos pela Copa e integra a Articulação Nacional dos Comitês Populares da Copa.

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